sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Dia do Meio do Verão, Ano da Magia Selvagem - SEGUNDA HORA

E de fato a piada incomodou profundamente o monge, pois tangia uma parte obscura de seu passado: ele desconhecia sua verdadeira origem. Tudo o que Mahaluk se lembrava era de ter sido criado e educado pelos abades do Mosteiro da Alma Solar desde criança. Mas ele sempre foi o único entre todos os acólitos de que se lembrava que possuía a pele cor de oliva recoberta por pequenas e discretas escamas, tornando sua pele semelhante à pele dos orcs; e seus olhos eram fendidos e completamente amarelados – como os de uma serpente.
Mahaluk, quando pequeno, já havia sido afrontado de modo semelhante por outro acólito. Vallaren era o nome do garoto grandalhão e cruel, que tinha o péssimo hábito de valer-se de sua corpulência e do fato de ser mais velho e maior que Mahaluk, para disparar fanfarronices e ofensas. No final das contas, meses depois, o grandalhão obteve a recompensa que merecia: permaneceu sem poder falar durante um ano. Pois Mahaluk se vingou derrotando-o no combate ritual em que obteve grau de pajem, acertando um murro espiralado bem colocado no meio da boca de seu adversário, partindo-lhe a mandíbula e arrancando vários de seus dentes.
Como se retornasse de um transe, o monge mais que depressa largou seu amigo e ainda mais depressa se pôs a ampará-lo e a pedir perdão por seu descontrole.
– Sou eu quem deve desculpas, amigo – respondeu Kaduka'rim massageando os próprios ombros e pescoço. – Já passou da hora de eu aprender os limites do fio da minha língua. Afinal foi graças a ela que tive que me exilar.
– Não é verdade – objetou Mahaluk. – Foi a intolerância que o expulsou de tua casa. A mesma intolerância que me fez perder a cabeça com tua piada, pois me jogou de volta a um tempo onde eu era hostilizado por minha aparência. Considerava que já tinha me livrado desse cancro, mas vejo que o sol de Lathander ainda não consegue iluminar esse recanto da minha alma.
– Eu é que não tolero essa conversinha mole de princesa – praguejou Hammer saindo da água. Rudemente ele se enxugou com a própria barba e começou a se vestir, devolvendo-lhes de modo tosco a compostura. Gafir pôs-se a gargalhar, e os companheiros se paramentaram novamente.
De repente, Olhos-do-falcão avistou algo diferente e se afastou dos demais. O mateiro viu que um plátano particularmente antigo, tão largo quanto uma casa e que torreava ali perto, possuía pinturas em seu caule.
– Camaradas, tenho ótimas notícias! – disse ele empolgadamente, reconhecendo as figuras. – Estes símbolos representam o Reino de Cormanthyr, a leste de Anauroch, o Grande Deserto. Corellon seja louvado!
– Impossível! – destoou Hammer. Seu lar ficaria poucas léguas a sudoeste do local que Olhos-do-falcão supunha estarem naquele momento. – De acordo com os velhos mapas e tapeçarias que existem em Pilares Profundos, o nome dos salões de onde venho, Cormanthor, que chamamos de Floresta da Velha Corte, fica pouca distância a nordeste dos Picos do Trovão. Era para fazer um frio de trincar pedra! Deveríamos estar vendo todas estas árvores desfolhadas e nevascas caindo. E faz um calor infernal! Você tem certeza que as gravuras são de Cormanthyr?
– Este é o triângulo formado pelas Três Lâminas Telquessir, cada um de seus vértices contendo a Crescente de Corellon e envolvendo a Harpa da Cidade-canção sob a Coroa de Eltargrim, último Coroado de Myth Drannor – descreveu o mateiro em detalhes inequívocos. – Estamos provavelmente na fronteira oriental de Cormanthor.
– E como você explica este clima? – insistiu Hammer.
O elfo permaneceu em pensativo silêncio. Havia uma possível resposta para a pertinente questão de Hammer, mas ele preferiu não dizer nada, pois era um assunto reservado apenas à sua própria gente.
– Em outras palavras, se fomos magicamente teleportados, estamos a meio mundo de distância de onde deveríamos estar – observou Mahaluk incisivamente. – Notícias não tão ótimas assim.
– E daí? – redarguiu Olhos-do-falcão subitamente aborrecido. – Você é surdo? Estamos perto de Myth Drannor! Minha família abandonou o lugar há séculos para morar em Artaur, muito antes de eu nascer. Se localizarmos a antiga casa da minha família, a Casa de Kwudang, encontraremos um portal mágico que leva de lá até minha casa na periferia de Artaur, não muito longe do Forte da Vela.
– Portal que pode estar estragado como o portal que nos trouxe até aqui – observou Manwe. – Se Mahaluk é surdo, você é louco. Sem mencionar os demônios que perambulam pelas ruínas. Meu mestre dizia que em Myth Drannor existia uma grande mágica protetora...
– Se sou louco, seu mestre era mais! – interrompeu o elfo, antecipando o que Manwe ia falar. “Mythal” era a palavra que o mateiro assassinou nos lábios do menino. E era também a resposta à pergunta feita por Hammer a respeito do clima: um dispositivo místico de segurança, criado pelos Artesãos telquessir mais habilidosos e poderosos, carregado de encantamentos protetores, designado com o propósito de proteger áreas enormes e telquessir que nessas áreas morassem, muitas vezes concedendo a eles capacidades extraordinárias. O conhecimento da existência desses dispositivos era realmente o mais secreto e sagrado para os elfos.
– Demônios? – disse Kaduka‘rim, com a lembrança do pesadelo mais que real quase projetada diante de seus olhos. – Aos diabos com os demônios! – Este era um provérbio do povo mulhorandi, que acreditava que os principais inimigos dos diabos eram os demônios e vice-versa, e não os anjos e arcontes como acreditava a maioria das outras nações. – Eu não vou para lugar nenhum onde existam demônios!
– Isso é besteira inventada por vocês humanos, que criam lendas para saquear a herança telquessir, sedentos por fama e tesouros! – disparou o elfo furiosamente.
– Parem! – gritou Ebérik, sempre o conciliador e a voz da razão, batendo forte seu malho contra seu escudo, à guisa de gongo. – Somos todos surdos, loucos e intolerantes. Vamos analisar a situação com calma: se ainda estivermos em Faerûn, estamos perto de Myth Drannor, longe do Forte da Vela e de Khelben. Precisamos de um livro mágico para entrar naquela maldita fortaleza. Myth Drannor é uma ruína de um local outrora aberto a todos os povos pacíficos, e não apenas aos elfos, e que, com ou sem demônios, deve conter algum livro qualquer dando sopa, já que se presume que seus donos deixaram o lugar faz tempo. Se não acharmos nenhum livro místico, um objeto de conhecimento retirado de Myth Drannor já é tesouro equivalente a qualquer grimório. Poderíamos pegar um livro e tentar um dos tais portais para a Floresta Alta, encurtando nossa viagem consideravelmente. Ou arriscamos os demônios e voltamos aonde deveríamos estar, dentro de dois dias, ou cruzamos Faêrun de mãos vazias em uma jornada de meses, que pode acabar em um fim tão trágico quanto ser dilacerado por demônios. Afinal de contas, muitas criaturas habitam os ermos das Terras Centro-ocidentais, e nem todas são civilizadas como nós.
– Digam o que quiserem – teimou o mateiro –, mas tenho plena segurança de que este é realmente o Quessirionduin. Juro pelos Seldarine e pelos Eladríni que estamos em algum lugar a leste ou nordeste de Myth Drannor, mas qualquer que seja o ponto exato, estamos a cerca de uma semana de lá, e não a apenas dois dias. Mas não se pode ter certeza de nada ainda. O que me intriga é esta estrela dourada de cinco pontas circundando o brasão. A tintura empregada aqui é mais recente que a tintura do emblema de Drannor. Não sei de nada que diga que Cormanthyr tenha sido anexado por algum outro reino, mas se foi, podemos encontrar problemas. Se formos à Cidade-canção, infelizmente é bom abandonarmos o rio exatamente onde estamos.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Dia do Meio do Verão, Ano da Magia Selvagem - SEGUNDA HORA


– Alguém pode, em nome dos deuses, dizer o que está acontecendo? Onde estamos? – esbravejou Hammer.
Esforçando-se, Manwe tentou se lembrar de cada ensinamento de seu querido mestre, que tanto lhe fazia falta. O terror cedeu lugar à tristeza.
– Acho que fomos teleportados por algum símbolo de proteção – disse ele. – Se for isso, temos um problemão: meu mestre um dia me disse que teleporte descontrolado pode mandar o conjurador para qualquer lugar nos Planos, sejam terras mortais ou imortais.
Ebérik sobressaltou-se assustado. – Que Berronar nos proteja! – exclamou ele. – Podemos estar nos Reinos Além, nas Terras dos Deuses! Não podemos avançar de outra maneira que não seja com extrema cautela. Preciso comungar com a Santa Mãe, já que não fiz isso na noite passada – disse Ebérik. – Precisaremos de Sua Sagrada Ajuda de agora em diante. Acredito que a Senhora de Prata olhou por nós enquanto ficamos apagados, e preciso demonstrar-lhe minha gratidão.
– Um reconhecimento da área realmente vem bem a calhar – observou Mahaluk, concordando com Ebérik. – Não sabemos o que poderemos encontrar pela frente.
Olhando ao redor, os companheiros constataram que estavam sob as copas de uma floresta. Porém, o clima se apresentava muito mais quente e abafado; não havia mais carvalho nenhum por ali e as castanheiras colossais haviam cedido terreno a muitas outras espécies de árvores, como bétulas, teixos, freixos, faias, mognos e muitas outras cujos nomes até mesmo Olhos-do-falcão desconhecia. As que mais chamavam a atenção eram árvores altas e sem folhas, cujas copas eram repletas de flores púrpuras, que cascateavam como véus pálidos à luz mortiça. Seus troncos cinzentos eram cobertos por líquenes esverdeados. O chão estava coberto por um tapete perene dessas flores, que a própria Chauntea deveria ter tecido ainda na Feitura de Toril, quando as luzes e as trevas combatiam entre si no firmamento. Colibris, cotovias, pintassilgos, pardais, estorninhos e muitos outros cantores cujas vozes eram desconhecidas aos companheiros compunham uma orquestra eterna em meio às copas. O doce e suave perfume da jovem primavera dominava o local. A forte luz do sol era filtrada através das folhas que brotavam em tons vivos de verde. O ar estava bem mais quente e ardido que o verão do norte. As folhas e as flores fulguravam iridescentes. Havia ali perto um riacho lamacento que, outrora, deveria ser bastante largo. Suas margens eram assombradas por nuvens de pernilongos, libélulas e mosquitos, vespas e abelhas. Inúmeras vezes os pássaros arriscavam rasantes em meio às nuvens vivas, errando por pouco as cabeças dos viajantes, indo banquetear os insetos infindáveis.
– Alguém está machucado? – disse o anão dourado levando a mão até seu medalhão sagrado. – Estarei humildemente pedindo a Berronar suas curas.
Como se em resposta a Ebérik, Kaduka’rim estalou os dedos, chamando a atenção para seu rosto.
– O que aconteceu com você? – disse Ebérik.
O menestrel então relatou a Ebérik seu pesadelo quase real e seu despertar em meio às formigas.
– Abra a boca e ponha a língua para fora.
O menestrel obedeceu e Ebérik examinou-lhe a garganta. – Você está sentindo algum desconforto na garganta ou dificuldade para respirar? – disse o sacerdote. O menestrel sinalizou negativamente com a cabeça.
– O veneno das formigas corre em suas veias, e dizem os mestres curandeiros que em alguns casos a garganta pode inchar, impedindo a respiração. Eu não tenho nenhuma prece contra venenos comungada, ou já teria diluído o veneno o suficiente para não causar estragos. Se você começar a sufocar, terei que abrir um buraco em tua garganta para você poder respirar novamente.
O menestrel, amedrontado, engoliu seco. Arrependeu-se, pois imaginou ter sentido um alarmante desconforto na garganta, mas não quis falar nada por enquanto.
– Talvez não tenhamos que chegar a isso – amenizou Olhos-do-falcão. – Mas agora retornando ao problema que temos à mão. Não adianta ficarmos aqui parados, e não podemos contar com que o Forte da Vela esteja próximo. O córrego do bosque corria para sudoeste; este riacho, pela posição do sol, corre para nordeste, exatamente a direção oposta, a não ser que estejamos em um ponto serpeante. Como faz calor aqui! Comparado à neve que enfrentamos até ontem, isto aqui é quase um escaldo! Vamos seguir o ribeiro e ver aonde ele nos conduzirá. Nas margens poderemos encontrar bambus que podem funcionar como tubos de respiração se a garganta de Kaduka’rim começar a se fechar, e conheço algumas plantas cujas seivas dão ótimos antídotos, e que costumam crescer em margens de fluxos.
Tendo percebido a sabedoria nas palavras do elfo, todos concordaram em seguir viagem margeando o ribeiro. Logo o mateiro encontrou um bambu perfeito para a delicada situação do menestrel. Apanhando seu próprio facão, o elfo cortou um gomo de espessura e comprimento adequados e lixou as bordas do gomo em um seixo grande como um ovo encontrado logo ali, eliminando quaisquer farpas. – Use isto se precisar – disse Olhos-do-falcão para Kaduka’rim, e entregou-lhe o pedaço de bambu. – Basta empurrar o bambu goela abaixo. Provavelmente vai machucar a garganta, mas você não vai morrer sufocado.

Os companheiros caminhavam com dificuldade pela floresta, pois não havia trilhas, o terreno era acidentado, lamacento e extremamente escorregadio, e a mata ciliar era muito densa, formando, frequentemente, emaranhados de raízes, cipós e trepadeiras quase intransponíveis. Suas copas entrelaçavam-se para formar um dossel tão espesso que deixava tudo abaixo envolto em penumbra eterna e nevoenta. Ocasionalmente sarças e espinheiros surgiam aqui e ali, alguns rasteiros e outros tão altos que formavam túneis sob os quais os companheiros eram obrigados a transpor rastejando. Logo ficaram completamente arranhados e cobertos de lama e espinhos, como almofadas repletas de alfinetes. Os viajantes continuaram seguindo pela margem oeste do riacho, que ocasionalmente fazia curvas e se dividia em alagados e lodaçais. Os mosquitos retornaram com força total e ferroavam tanto que mais pareciam estar arrancando nacos de suas peles, junto com as crostas de lama endurecida que, presumivelmente, deveriam afastá-los. Frequentemente os caminhantes afundavam até os joelhos, arriscando torções e ferimentos mais graves. Apesar disso, o ribeiro sempre continuava correndo para a mesma direção.
Conforme prosseguiam rumando para nordeste, mais estreito ficava o fluxo. De vez em quando, trechos de cascalho e seixos de vários tamanhos e cores salpicavam seu leito, que, em tempos idos, deveriam originar corredeiras ferozes. Iniciou-se um declive suave no terreno, e um juncal alto e denso começou a surgir na margem próxima do ribeiro, ocultando parcialmente seu leito. Naquele ponto, Olhos-do-falcão arrancou um punhado de pequeninas bagas avermelhadas de uma árvore baixa, de copa larga e frondosa, e as cheirou. Ele sorriu e foi até o menestrel.
– Mastigue isto aqui até o comecinho da noite e engula apenas saliva – disse ele a Kaduka’rim, entregando-lhe as ramagens. Não se preocupe que ainda não é hora de teus deuses te receberem.
Após uma quantidade cansativa de caminho percorrido, as árvores se abriram um pouco, e enfim puderam ver o vespertino céu azul turquesa novamente. Altas gramíneas começavam a se espalhar por todos os lados a partir de certo trecho, transmitindo a sensação de atravessarem um fofo tapete para os pés doloridos. Finalmente, os companheiros atingiram uma área onde o terreno ficava mais regular e firme. As árvores se abriram por completo e o céu completamente limpo saudou-lhes com um cálido olho dourado que em, no máximo, uma hora desceria para além do horizonte.
Ali perto, viram que o riacho derramava suas águas turvas num rio muito mais largo e de águas mais transparentes, embora ainda carregasse bastante sedimento. Apesar da margem igualmente lamacenta, o rio era muito largo. Provavelmente singrava mares verdes de uma floresta muito maior, pois sua longínqua margem oposta era, se não mais rica, igualmente arborizada. Naquele ponto, as aves faziam uma algazarra ainda maior e os peixes frequentemente saltavam para fora d’água para tanto dividir os insetos com as aves quanto para serem eles mesmos divididos por elas. Garças, martins-pescadores e outras aves ribeirinhas se esbaldavam com a abundância e com a diversidade de peixes. Este rio corria também para nordeste, porém era ainda mais voltado para o norte.
Com um amplo sorriso em seu formoso rosto, o forte Olhos-do-falcão inspirou profundamente enchendo seus pulmões com ar puríssimo.
– Quisera eu que este rio fosse o Abençoado Quessirionduin de Cormanthor, renomado em inúmeras canções e tradições do meu povo!
Mais que depressa, o mateiro despiu-se e pôs-se a se lavar da lama e a lavar as escoriações causadas pelos espinhos e pelas picadas dos insetos. Seus companheiros resolveram seguir o exemplo do elfo, e logo os sete estavam rindo, espirrando água uns nos outros, dando caldos uns nos outros e fazendo piadas com os pudores uns dos outros. Manwe já havia esquecido os terrores da caverna e ora ria enlouquecido; não só pelas piadas, pois era jovem e não tinha ainda muita malícia, não as compreendendo inteiramente, mas ele se sentia de volta ao circo, com seis palhaços fazendo palhaçadas ao seu redor.
Kaduka’rim, piadista profissional, lançava as mais afiadas alfinetadas e por isso era a vítima mais frequente das tentativas de afogamento, em especial da parte de Mahaluk que, por ser seu amigo mais antigo entre os demais, recebia o ápice satírico do menestrel. – Você tem tanta escama, Mahaluk, porque é filho de uma piranha! – sobressaiu-se entre as piores provocações. E nessa caçoada em particular Kaduka'rim sentiu em Mahaluk uma reação diferente, e ficou assustado, pois a chave-de-braço do monge foi muito mais apertada que as duas anteriores, e o menestrel podia jurar que teria o pescoço partido.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Dia do Meio do Verão, Ano da Magia Selvagem - PRIMEIRA HORA

Kaduka’rim pôs-se de pé num salto e começou a se estapear alucinadamente, tentando apagar as chamas. Uma forte luz branca o cegava. Seu corpo ardia como se milhares de formigas o ferroassem.
– Que loucura é esta? – gritava ele, olhando-se de cima a baixo, pois de fato onde havia labaredas devorando sua carne, agora incontáveis formigas, tão grandes quanto seu polegar, rastejavam e ferroavam e beliscavam de cima a baixo.
Ele se jogou de volta ao chão, rolando para esmagar o maior número possível daquelas pestes, se batendo e se contorcendo. Quando enfim conseguiu se livrar dos malditos insetos, viu-se tomado pela ardência do veneno. Kaduka’rim estava suado da cabeça aos pés. Ele olhou ao redor, arquejando, tentando divisar se havia mais algum perigo, mas havia pouquíssima luz por ali.
– Estou em Baator? – perguntou-se, mas se amedrontou imediatamente com os ecos tenebrosos de sua própria voz ressoando em paredes invisíveis, escondidas nas sombras.
Medo, confusão, dúvida, curiosidade, assolavam seu tino a marretadas; afinal de contas, a praça, os guardas, o sacerdote ensandecido, seu duplo, a fogueira, o demônio e o colosso, tudo havia desaparecido!
Kaduka’rim estava no que aparentava ser uma espécie de caverna. Seu tamanho não podia ser determinado, pois pouco de seu interior podia ser visto, apenas uma breve porção ao redor de um feixe de luz branco-amarelada logo a seu lado, que adentrava aquele lugar por um túnel oblíquo ascendente, e na distância alguns focos esverdeados ou amarelados que emanavam de estranhos cogumelos fosforescentes.
Seu corpo tremia violentamente devido ao suor frio e ao pânico, e seu estômago agia como se realizasse um número acrobático circense dentro de sua barriga delgada.
– Será que foi um pesadelo? – indagou-se em voz mais baixa desta vez, quase um sussurro.
Pondo-se precariamente de pé, ele podia ver que o batalhão principal dos formigões que o atacaram se enfileirava, escalava a parede rochosa mais próxima e adentrava o túnel numa pressa desabalada. Ali no chão, logo a seu lado, havia um pequeno espaço por onde provavelmente a faixa de luz solar passava ao longo do dia, conforme o alinhamento do túnel, como se vista do fundo de um poço, e ali cogumelos e algumas plantas mirradas e esguias, todos pardacentos ou de um verde-esbranquiçado doentio, cresciam e se esticavam numa tentativa fútil de alcançar a cavidade elevada do túnel ascendente, como se fossem veias mortas que já não pulsavam mais. Mas funcionavam como escadas perfeitas para o estouro de formigões.
De repente um grito agudo de terror e agonia preencheu a caverna, fazendo Kaduka’rim quase vomitar seu coração com o susto. Ele conhecia aquela voz, e, recuperando a resolução, tratou de disparar na direção dela o mais rápido que a irregularidade traiçoeira do chão permitia.
Tendo abandonado a área iluminada, seus olhos começaram a enxergar as “cores escuras”. Era assim que ele chamava as cores que todas as coisas assumiam sob escuridão total, e ele enfim pôde perceber que a caverna tinha incontáveis passos de diâmetro, estendendo-se para muito além de seu campo de visão, que, na ausência de luz, captava gradientes de preto, branco e cinza, misturados com gradientes de azul para coisas frias e púrpura para coisas quentes.
– Manwe, é você? – chamou o menestrel em voz alta. Porém suas palavras soaram como se oriundas de um local muito distante no interior da caverna, incontáveis metros além. Tamanho era seu domínio sobre sua voz, que ele era tido como o melhor ventríloquo entre os aprendizes do Magnífico Ghoranghut, Grão-bardo e Senescal do Sagrado Hórus-re.
Manwe, o mais jovem corajoso a integrar a companhia de Kaduka’rim, era um menino cormyriano que havia sido resgatado de um assalto em que um bando de ogros massacrou sua família, uma trupe circense itinerante liderada por seu pai, Naghamba, o Falcão de Suzail, maior acrobata, malabarista e domador de feras de Cormyr, enquanto atravessavam o Passo da Prata nos Picos do Trovão. Se aquilo eram os Nove Infernos de Baator, por que Manwe, um menino valente e inocente estava ali? E por que ele gritava? Estaria algum demônio terrível o molestando?
Mais um grito de desespero fez-se ouvir.
Após contornar uma enorme estalagmite, o menestrel o encontrou finalmente: uma pequena figura sentada, olhos espremidos de tanta força com que os fechava, cobrindo os ouvidos com as mãos. Ele bamboleava sobre o próprio quadril freneticamente num estupor alucinado e ofegante. Pouco mais atrás, inconscientes em pontos aleatórios no chão, havia cinco pessoas: os demais companheiros da confraria a que pertenciam Kaduka’rim e Manwe.
E eis que a memória dos últimos quatro meses vividos pelo menestrel retornou de supetão, como se um dragão tivesse caído dos céus sobre si; desde o início de seu exílio no Mosteiro da Alma Solar até o último local em sua memória antes do pesadelo: a pequena gruta no coração do Bosque dos Dentes Afiados, onde se encontrava o Tomo de Poder exigido como taxa de acesso ao Forte da Vela. E mais uma vez veio-lhe a imagem de Ghoranghut e suas lições. O Grão-bardo lhe ensinara um truque que nenhum de seus demais pupilos jamais sonhou em aprender: criar luz a partir do nada. Não era uma técnica refinada nem complicada. Muito pelo contrário. Bastava se concentrar em um ponto qualquer, não muito distante, e imaginar o sol do meio-dia naquele ponto. Entretanto criar luz era muito cansativo, e o Grão-bardo sempre o advertia para usar essa técnica somente em caso de necessidade, pois era muito exaustiva.
Julgando que aquela era uma situação adequada, Kaduka’rim imaginou o sol a uns dez metros de altura, diretamente acima de si. Porém a luminosidade criada estava muito longe de poder ser comparada à luz do sol, sendo mais parecida com a chama de uma tocha. Kaduka’rim voltou a enxergar as “cores claras”. Ele, porém, estava enfraquecido, e aquele truque o desgastou ainda mais. Somando tudo, seu estômago deu de si, e pôs para fora puro fel, e o menestrel foi ao chão, quase desmaiado. Mas mesmo assim foi rastejando até o menino.
– Chhh! Calma agora, garoto, está tudo certo – acalentou o Menestrel, abraçando-o suavemente e dando-lhe guarida – estamos todos aqui.
Kaduka’rim não sabia se isso era bom ou ruim, porém. Se quando alguém é mandado ao inferno acorda sozinho, por que seus companheiros jaziam ali?
Manwe não dava sinais de que despertaria daquele estranho frenesi.
Kaduka’rim ergueu seus olhos tentando buscar inspiração. Nada havia ali que pudesse ajudá-lo com o pobre menino. Sua luz bruxuleava instável. “É isso!” pensou.

Eu vou com meu lampião
e ele comigo vai
No céu brilham estrelas
Na terra brilhamos mais
Minha luz que fulge eterna
Vem espantar a escuridão
 Me tirar da solidão
E me acalmar o coração
Vem comigo lampião
Vem comigo lampião

 Aquele era um acalanto popular entre as crianças mulhorandi que o cantavam para espantar o medo da noite de Set. Na terceira vez que Kaduka’rim repetiu tais versos eles começaram a surtir efeito, pois o menino começava a se acalmar: sua respiração retomava o compasso natural e ele não mais se balançava. Manwe abriu os olhos.
– P-papai e mamãe estavam zangados comigo! Eles queriam me bater! E depois veio o ogro! E eles tinham machados!
– Já passou, Manwe. Foi um pesadelo – assegurou o menestrel. – Temos que sair daqui. Minha luz e o barulho que fizemos podem ter chamado a atenção de má companhia.
Porém, todos pareciam ter entrado num sono profundo, comatoso. Ainda mais barulho eles tiveram que fazer, e mais alarmados eles ficavam. Hammer, o chefe dos mineiros anões da cordilheira dos Picos Trovejantes, precisou levar vários tapas no rosto para despertar.
– Pssssiu! – chiou Gafir, o Vigilante, alarmado com a barulheira. Gafir era membro da guilda dos Juízes da Meia-Noite, uma extensa rede de ex-ladrões que de noite rondavam secretamente as ruas de várias cidades grandes caçando bandidos e rufiões através de espionagem e infiltrações nas guildas dos marginais. – Calados! – sussurrou ele. – Vocês ouviram isso?
– Ouviram o quê? – sussurrou apreensivo Ebérik, sábio sacerdote de Berronar Verargêntea, a Matriarca Protetora do Povo Anão e Consorte de Moradin, Pai dos Anões e Forjador das Almas. O jovem anão-dourado levou a mão à orelha, tentando escutar algo, mas sem sucesso.
Houve de repente um estranho bruxuleio na escuridão da caverna, como se na distância as sombras negras como os véus de Shar esvoaçassem.
– Vamos sair daqui! – ordenou em voz alta, sem se importar mais com qualquer perigo, o elfo-das-florestas e mateiro, conhecido como Olhos-do-falcão, que, como qualquer elfo, tinha ouvidos ainda mais apurados. – Ouço os passos abafados de vários pés correndo na nossa direção! Mexam-se!
Tamanhas eram a segurança e a certeza em seu alerta que imediatamente os demais correram para o túnel iluminado. Manwe gemia de terror.
– Deixem que Hammer e depois Manwe vão primeiro. Vou por último. Ajudo vocês a escalarem – instruiu Mahaluk.
Mais que depressa, com o perigo em seus calcanhares, um a um adentraram o túnel. Sábia foi a decisão de Mahaluk, pois era o mais alto e mais encorpado da companhia. Ele não queria atrasar seu grupo correndo o risco de entalar devida sua corpulência, que também era uma ótima cobertura para sua fileira caso houvesse qualquer disparo. Além do mais, o monge de Lathander estava acostumado àquele tipo de túnel, pois fazia parte de seu treinamento escalar os picos e gretas escarpados, arriscando quedas mortais em precipícios e despenhadeiros afiados como facas e escorregadios como se fossem de gelo, pois assim era a Muralha do Oriente, a alta e escarpada cordilheira que abrigava seu monastério.
Aquele túnel, porém, não era nem escarpado nem escorregadio, e tinha reentrâncias e saliências onde era possível agarrar e se impulsionar para frente e para cima, apesar de ser bastante oblíquo. Contava com uns dois metros de diâmetro e dez metros separavam os companheiros de sua extremidade oposta, e conforme subiam, eles notaram que raízes esparsas brotavam da terra compactada e rochosa, facilitando ainda mais a escalada.
– Andem logo! – gritou Mahaluk, que começara a escalar com tal agilidade que surpreendeu até mesmo o mateiro, mestre em se deslocar entre as copas das árvores, que estava logo a sua frente. Ao olhar para o monge, Olhos-do-falcão viu que uma sombra escura e amorfa começava a rastejar túnel acima, pouca distância atrás de Mahaluk.
Um a um os companheiros saltaram avidamente para fora. – Rápido, me ajudem com isto aqui! – disse Mahaluk. – Vamos tampar o túnel.
O monge rapidamente correu até uma pedra escorada a uma árvore logo ali, e empurrou-a com força, pois com sorte, e se seus cálculos estivessem corretos, ela cairia exatamente sobre a boca do túnel. Hammer e Olhos juntaram seus esforços aos do monge e, com uma pancada surda, a rocha selou o buraco, permitindo que, por ora, os companheiros permanecessem a salvo. Todos se atiraram ao chão, arquejando exaustos.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Dia do Meio do Verão, Ano da Magia Selvagem


– Nosso Senhor Hórus-re nos abençoou com Sua Poderosa Companhia e com Seu Sagrado Aconselhamento. Dessa maneira, com Sua Doce Voz em nossos ouvidos, manifestamos Sua Vontade e Seu Desígnio, sentenciando Kaduka’rim culpado pelos crimes de Infâmia, Perjúrio contra Un-Hai Iear, Profeta-diplomata de Set, e Corrupção Espiritual contra Hórus-re. O Círculo da Condenação sentencia que o culpado sofrerá Pena de Morte por Imolação, diante do Colosso de Anúbis, na hora do zênite solar.
Aterrorizado, o menestrel ouviu a sentença reverberando pela grande câmara abobadada conhecida como O Olho de Osíris. Os pedaços que restavam de sua alma desmoronavam enquanto a turba aplaudia freneticamente na vasta arquibancada, comemorando a decisão contra o acusado. Por um instante fugaz, a visão de Kaduka’rim pareceu dissolver-se em um mosaico bizarro onde tudo ficava mais e mais borrado. Ou seria um truque das lágrimas que lhe brotavam?
 Os membros do Círculo da Condenação deixaram a imponente mesa basáltica e retiraram-se por uma passagem logo atrás, que se comunicava com os salões internos e demais dependências palacianas. Tal passagem situava-se sob as pernas da figura de um grande íbis de penas negras e púrpuras, que representava Thoth, Patriarca da Sabedoria. A imagem estendia ominosamente suas asas ao longo do perímetro do Olho de Osíris até, enfim, as pontas de suas penas se encontrarem na extremidade oposta do grande recinto, envolvendo o Olho num vasto abraço. Sob suas asas, apresentava-se uma imponente arquibancada esculpida na parede rochosa, que ora estava absurdamente lotada, com muito mais que as cem mil pessoas que era capaz de comportar. O Círculo da Condenação consistia de uma ampla mesa circular cortada e talhada a partir de um imenso bloco de basalto púrpura retirado de um vulcão nas longínquas Ilhas Alaor, situadas no Mar de Alamber a noroeste de Skuld, a mais antiga cidadela do mundo. A mesa era decorada em baixo relevo com hieróglifos e efígies dos deuses do Panteão Mulhorandi. Nove altos assentos de mogno para seus ilustres membros circundavam-na, bem como o fazia um mar de tapeçarias suntuosas, dispostas pelo chão, nas quais predominavam as cores verde, dourada e negra em padrões e matizes hipnóticos.
E eis que os enormes pórticos de acesso lentamente abriram-se como uma boca paciente e tranqüila, que tinha plena certeza de que ali vinha a comida. Saindo do vasto complexo palaciano, os guardas conduziram Kaduka’rim rumo aos Jardins de Ísis, praça principal de Skuld, capital de Mulhorand, sob um céu azul límpido e um sol escaldante. No centro daquela praça agigantava o Colosso de Anúbis, visível praticamente a partir de qualquer ponto da mais antiga cidadela do mundo. Terraços, mansões, palacetes e casarões de arenito dourado, imponentes e majestosos, antigos e recentes, espalhavam-se pela metrópole, em seus ângulos retos repletos de arestas. Por ordem divina, apenas as construções mais baixas deveriam circundar os Jardins, pois a Esmeralda dos Deuses era um prêmio que todos tinham o direito e o dever de admirar. O Colosso vigiava como uma eterna sentinela o cálido Mar de Alamber, centenas de metros a oeste, e o Rio das Sombras que nele derramava suas águas escuras, ora tingidas de dourado pelo sol da manhã.
Severas açoitadas flagelavam o menestrel. Kaduka’rim, apenas com trapos e farrapos cobrindo partes mínimas de seu corpo, porém envolto em pesados grilhões e espessas correntes, tropeçava descalço pelas ruas. Suas solas eram dolorosamente perfuradas por pedras aguçadas e queimavam naquele chão de pedra seca e calcinante. Sua língua grossa e ressecada grudava-lhe no céu da boca. O ar recusava-se a entrar em seus pulmões. O menestrel sentia já estar saboreando sua sentença; entretanto, ele sabia que aquilo era apenas um prenúncio da dor que o assolaria por um tempo sem fim. Ele queria gritar, porém sua garganta seca parecia que iria se romper com o esforço, e seus gritos internos, ao chegarem-lhe à garganta, frágil qual casca de ovo, pereciam em um silvo débil e choroso.
Quaisquer que fossem os locais por onde os guardas passassem, eram exortados pela turba enfurecida. Era inconcebível que deixasse de sofrer, alguém que tivesse cometido tamanha heresia contra o pai de seus deuses. Pedras, tomates, paus, ovos, tijolos – além de ocasionalmente voarem algumas facas – e muitas outras coisas fedorentas, eram sempre atirados contra Kaduka’rim. Os guardas frequentemente eram atingidos pelos disparos da turba e se enfureciam. Porém a fúria deles não era devolvida à população, mas canalizada contra o menestrel que era dolorosamente surrado qual cão sarnento.
O caminho que conduzia do Olho de Osíris até os Jardins de Ísis não era tão longo; seguia sempre plano e quase em linha reta. Apesar disso, pareceu ao menestrel que uma longa vida se passou até alcançar o lugar derradeiro. O condenado chegou cambaleante, exausto e coberto de imundície e sangue aos pés do Colosso. Isso só lhe rendeu mais e mais açoitadas, aplicadas com inclemência e crueldade, pois, conforme escrito nos Sagrados Éditos de Hórus-re, ninguém deveria macular o solo consagrado a Anúbis com sangue.
Havia no coração da praça altas oliveiras e tamargueiras frondosas, que circundavam uma ampla pilha de lenha de ignição rápida e queima lenta toda embebida em óleo, extraída da árvore conhecida pelo nome de Shamesh, ao redor de uma imensa figura de madeira postada sobre um altar de pedra, amplo e rústico. Comparada ao Colosso de Anúbis, a figura era minúscula, mas ainda assim era mais alta que muitas casas das cercanias. Ela lembrava um dos seres diabólicos que habitam os Infernos de Baator. Kaduka’rim contemplou aquela gárgula com terror ainda maior, pois sabia que a imolação sob os pés de um diabo era o pior castigo existente, já que condenava as almas a jamais poderem retornar ao Mundo, caindo eternamente na inexistência e no esquecimento, até ser devorada por algum poder maligno. O bardo foi preso com correntes ainda mais pesadas entre as pernas grotescas da estátua.

– Execute-se a sentença! – ordenou a plenos pulmões o Sumo-sacerdote de Hórus-re.

Uma grande porta de ébano situada no pedestal do Colosso de Anúbis foi aberta. Dela saíram dois homens encapuzados que seguravam tochas nas mãos. Um deles trajava uma longa batina verde e negra, e trazia em seu peito a insígnia de Set: uma naja pronta para o bote, sobre um campo azul-celeste. O outro trajava um manto todo negro com motivos e estampas de chamas que lhe subiam dos pés aos ombros. Caminhando lado a lado, vagarosamente, eles enfim pararam diante do menestrel.
O primeiro removeu seu capuz: era o Profeta-diplomata Un-Hai Iear, que desatou a rir em sua ânsia ensandecida por vingança. Ele atirou a tocha aos pés de Kaduka’rim. Nesse ínterim, o outro homem ocupava-se em atear fogo à lenha ao redor.
As chamas começaram a arder. Um inferno se espalhou por todos os lados, e o bardo freneticamente tentava lutar, mas em vão. O ar ondulava ao calor, bailando em passo letal com as folhas das oliveiras.
Logo em seguida, o segundo homem removeu seu capuz negro. Naquele momento, o tempo pareceu ter congelado seu fluxo, e Kaduka’rim quase engoliu a própria língua.

– Hórus-re me perdoe! – gritava silenciosamente o menestrel para sua alma. – Sou eu!

A máscara estóica de si próprio estampava-se no rosto de seu gêmeo, que o fitava impassível. A única coisa que se via em seus olhos era o reflexo das colunas flamejantes, que enfim morderam os pés e as pernas do condenado. Pele e carne enrugavam e estalavam ao serem destruídas pelo fogo. Sua mente começou a consumir-se pela dor imensurável.

– NÃÃÃÃÃÃOOOOO!