terça-feira, 12 de outubro de 2010

Dia do Meio do Verão, Ano da Magia Selvagem


– Nosso Senhor Hórus-re nos abençoou com Sua Poderosa Companhia e com Seu Sagrado Aconselhamento. Dessa maneira, com Sua Doce Voz em nossos ouvidos, manifestamos Sua Vontade e Seu Desígnio, sentenciando Kaduka’rim culpado pelos crimes de Infâmia, Perjúrio contra Un-Hai Iear, Profeta-diplomata de Set, e Corrupção Espiritual contra Hórus-re. O Círculo da Condenação sentencia que o culpado sofrerá Pena de Morte por Imolação, diante do Colosso de Anúbis, na hora do zênite solar.
Aterrorizado, o menestrel ouviu a sentença reverberando pela grande câmara abobadada conhecida como O Olho de Osíris. Os pedaços que restavam de sua alma desmoronavam enquanto a turba aplaudia freneticamente na vasta arquibancada, comemorando a decisão contra o acusado. Por um instante fugaz, a visão de Kaduka’rim pareceu dissolver-se em um mosaico bizarro onde tudo ficava mais e mais borrado. Ou seria um truque das lágrimas que lhe brotavam?
 Os membros do Círculo da Condenação deixaram a imponente mesa basáltica e retiraram-se por uma passagem logo atrás, que se comunicava com os salões internos e demais dependências palacianas. Tal passagem situava-se sob as pernas da figura de um grande íbis de penas negras e púrpuras, que representava Thoth, Patriarca da Sabedoria. A imagem estendia ominosamente suas asas ao longo do perímetro do Olho de Osíris até, enfim, as pontas de suas penas se encontrarem na extremidade oposta do grande recinto, envolvendo o Olho num vasto abraço. Sob suas asas, apresentava-se uma imponente arquibancada esculpida na parede rochosa, que ora estava absurdamente lotada, com muito mais que as cem mil pessoas que era capaz de comportar. O Círculo da Condenação consistia de uma ampla mesa circular cortada e talhada a partir de um imenso bloco de basalto púrpura retirado de um vulcão nas longínquas Ilhas Alaor, situadas no Mar de Alamber a noroeste de Skuld, a mais antiga cidadela do mundo. A mesa era decorada em baixo relevo com hieróglifos e efígies dos deuses do Panteão Mulhorandi. Nove altos assentos de mogno para seus ilustres membros circundavam-na, bem como o fazia um mar de tapeçarias suntuosas, dispostas pelo chão, nas quais predominavam as cores verde, dourada e negra em padrões e matizes hipnóticos.
E eis que os enormes pórticos de acesso lentamente abriram-se como uma boca paciente e tranqüila, que tinha plena certeza de que ali vinha a comida. Saindo do vasto complexo palaciano, os guardas conduziram Kaduka’rim rumo aos Jardins de Ísis, praça principal de Skuld, capital de Mulhorand, sob um céu azul límpido e um sol escaldante. No centro daquela praça agigantava o Colosso de Anúbis, visível praticamente a partir de qualquer ponto da mais antiga cidadela do mundo. Terraços, mansões, palacetes e casarões de arenito dourado, imponentes e majestosos, antigos e recentes, espalhavam-se pela metrópole, em seus ângulos retos repletos de arestas. Por ordem divina, apenas as construções mais baixas deveriam circundar os Jardins, pois a Esmeralda dos Deuses era um prêmio que todos tinham o direito e o dever de admirar. O Colosso vigiava como uma eterna sentinela o cálido Mar de Alamber, centenas de metros a oeste, e o Rio das Sombras que nele derramava suas águas escuras, ora tingidas de dourado pelo sol da manhã.
Severas açoitadas flagelavam o menestrel. Kaduka’rim, apenas com trapos e farrapos cobrindo partes mínimas de seu corpo, porém envolto em pesados grilhões e espessas correntes, tropeçava descalço pelas ruas. Suas solas eram dolorosamente perfuradas por pedras aguçadas e queimavam naquele chão de pedra seca e calcinante. Sua língua grossa e ressecada grudava-lhe no céu da boca. O ar recusava-se a entrar em seus pulmões. O menestrel sentia já estar saboreando sua sentença; entretanto, ele sabia que aquilo era apenas um prenúncio da dor que o assolaria por um tempo sem fim. Ele queria gritar, porém sua garganta seca parecia que iria se romper com o esforço, e seus gritos internos, ao chegarem-lhe à garganta, frágil qual casca de ovo, pereciam em um silvo débil e choroso.
Quaisquer que fossem os locais por onde os guardas passassem, eram exortados pela turba enfurecida. Era inconcebível que deixasse de sofrer, alguém que tivesse cometido tamanha heresia contra o pai de seus deuses. Pedras, tomates, paus, ovos, tijolos – além de ocasionalmente voarem algumas facas – e muitas outras coisas fedorentas, eram sempre atirados contra Kaduka’rim. Os guardas frequentemente eram atingidos pelos disparos da turba e se enfureciam. Porém a fúria deles não era devolvida à população, mas canalizada contra o menestrel que era dolorosamente surrado qual cão sarnento.
O caminho que conduzia do Olho de Osíris até os Jardins de Ísis não era tão longo; seguia sempre plano e quase em linha reta. Apesar disso, pareceu ao menestrel que uma longa vida se passou até alcançar o lugar derradeiro. O condenado chegou cambaleante, exausto e coberto de imundície e sangue aos pés do Colosso. Isso só lhe rendeu mais e mais açoitadas, aplicadas com inclemência e crueldade, pois, conforme escrito nos Sagrados Éditos de Hórus-re, ninguém deveria macular o solo consagrado a Anúbis com sangue.
Havia no coração da praça altas oliveiras e tamargueiras frondosas, que circundavam uma ampla pilha de lenha de ignição rápida e queima lenta toda embebida em óleo, extraída da árvore conhecida pelo nome de Shamesh, ao redor de uma imensa figura de madeira postada sobre um altar de pedra, amplo e rústico. Comparada ao Colosso de Anúbis, a figura era minúscula, mas ainda assim era mais alta que muitas casas das cercanias. Ela lembrava um dos seres diabólicos que habitam os Infernos de Baator. Kaduka’rim contemplou aquela gárgula com terror ainda maior, pois sabia que a imolação sob os pés de um diabo era o pior castigo existente, já que condenava as almas a jamais poderem retornar ao Mundo, caindo eternamente na inexistência e no esquecimento, até ser devorada por algum poder maligno. O bardo foi preso com correntes ainda mais pesadas entre as pernas grotescas da estátua.

– Execute-se a sentença! – ordenou a plenos pulmões o Sumo-sacerdote de Hórus-re.

Uma grande porta de ébano situada no pedestal do Colosso de Anúbis foi aberta. Dela saíram dois homens encapuzados que seguravam tochas nas mãos. Um deles trajava uma longa batina verde e negra, e trazia em seu peito a insígnia de Set: uma naja pronta para o bote, sobre um campo azul-celeste. O outro trajava um manto todo negro com motivos e estampas de chamas que lhe subiam dos pés aos ombros. Caminhando lado a lado, vagarosamente, eles enfim pararam diante do menestrel.
O primeiro removeu seu capuz: era o Profeta-diplomata Un-Hai Iear, que desatou a rir em sua ânsia ensandecida por vingança. Ele atirou a tocha aos pés de Kaduka’rim. Nesse ínterim, o outro homem ocupava-se em atear fogo à lenha ao redor.
As chamas começaram a arder. Um inferno se espalhou por todos os lados, e o bardo freneticamente tentava lutar, mas em vão. O ar ondulava ao calor, bailando em passo letal com as folhas das oliveiras.
Logo em seguida, o segundo homem removeu seu capuz negro. Naquele momento, o tempo pareceu ter congelado seu fluxo, e Kaduka’rim quase engoliu a própria língua.

– Hórus-re me perdoe! – gritava silenciosamente o menestrel para sua alma. – Sou eu!

A máscara estóica de si próprio estampava-se no rosto de seu gêmeo, que o fitava impassível. A única coisa que se via em seus olhos era o reflexo das colunas flamejantes, que enfim morderam os pés e as pernas do condenado. Pele e carne enrugavam e estalavam ao serem destruídas pelo fogo. Sua mente começou a consumir-se pela dor imensurável.

– NÃÃÃÃÃÃOOOOO!

 

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