quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Dia do Meio do Verão, Ano da Magia Selvagem - PRIMEIRA HORA

Kaduka’rim pôs-se de pé num salto e começou a se estapear alucinadamente, tentando apagar as chamas. Uma forte luz branca o cegava. Seu corpo ardia como se milhares de formigas o ferroassem.
– Que loucura é esta? – gritava ele, olhando-se de cima a baixo, pois de fato onde havia labaredas devorando sua carne, agora incontáveis formigas, tão grandes quanto seu polegar, rastejavam e ferroavam e beliscavam de cima a baixo.
Ele se jogou de volta ao chão, rolando para esmagar o maior número possível daquelas pestes, se batendo e se contorcendo. Quando enfim conseguiu se livrar dos malditos insetos, viu-se tomado pela ardência do veneno. Kaduka’rim estava suado da cabeça aos pés. Ele olhou ao redor, arquejando, tentando divisar se havia mais algum perigo, mas havia pouquíssima luz por ali.
– Estou em Baator? – perguntou-se, mas se amedrontou imediatamente com os ecos tenebrosos de sua própria voz ressoando em paredes invisíveis, escondidas nas sombras.
Medo, confusão, dúvida, curiosidade, assolavam seu tino a marretadas; afinal de contas, a praça, os guardas, o sacerdote ensandecido, seu duplo, a fogueira, o demônio e o colosso, tudo havia desaparecido!
Kaduka’rim estava no que aparentava ser uma espécie de caverna. Seu tamanho não podia ser determinado, pois pouco de seu interior podia ser visto, apenas uma breve porção ao redor de um feixe de luz branco-amarelada logo a seu lado, que adentrava aquele lugar por um túnel oblíquo ascendente, e na distância alguns focos esverdeados ou amarelados que emanavam de estranhos cogumelos fosforescentes.
Seu corpo tremia violentamente devido ao suor frio e ao pânico, e seu estômago agia como se realizasse um número acrobático circense dentro de sua barriga delgada.
– Será que foi um pesadelo? – indagou-se em voz mais baixa desta vez, quase um sussurro.
Pondo-se precariamente de pé, ele podia ver que o batalhão principal dos formigões que o atacaram se enfileirava, escalava a parede rochosa mais próxima e adentrava o túnel numa pressa desabalada. Ali no chão, logo a seu lado, havia um pequeno espaço por onde provavelmente a faixa de luz solar passava ao longo do dia, conforme o alinhamento do túnel, como se vista do fundo de um poço, e ali cogumelos e algumas plantas mirradas e esguias, todos pardacentos ou de um verde-esbranquiçado doentio, cresciam e se esticavam numa tentativa fútil de alcançar a cavidade elevada do túnel ascendente, como se fossem veias mortas que já não pulsavam mais. Mas funcionavam como escadas perfeitas para o estouro de formigões.
De repente um grito agudo de terror e agonia preencheu a caverna, fazendo Kaduka’rim quase vomitar seu coração com o susto. Ele conhecia aquela voz, e, recuperando a resolução, tratou de disparar na direção dela o mais rápido que a irregularidade traiçoeira do chão permitia.
Tendo abandonado a área iluminada, seus olhos começaram a enxergar as “cores escuras”. Era assim que ele chamava as cores que todas as coisas assumiam sob escuridão total, e ele enfim pôde perceber que a caverna tinha incontáveis passos de diâmetro, estendendo-se para muito além de seu campo de visão, que, na ausência de luz, captava gradientes de preto, branco e cinza, misturados com gradientes de azul para coisas frias e púrpura para coisas quentes.
– Manwe, é você? – chamou o menestrel em voz alta. Porém suas palavras soaram como se oriundas de um local muito distante no interior da caverna, incontáveis metros além. Tamanho era seu domínio sobre sua voz, que ele era tido como o melhor ventríloquo entre os aprendizes do Magnífico Ghoranghut, Grão-bardo e Senescal do Sagrado Hórus-re.
Manwe, o mais jovem corajoso a integrar a companhia de Kaduka’rim, era um menino cormyriano que havia sido resgatado de um assalto em que um bando de ogros massacrou sua família, uma trupe circense itinerante liderada por seu pai, Naghamba, o Falcão de Suzail, maior acrobata, malabarista e domador de feras de Cormyr, enquanto atravessavam o Passo da Prata nos Picos do Trovão. Se aquilo eram os Nove Infernos de Baator, por que Manwe, um menino valente e inocente estava ali? E por que ele gritava? Estaria algum demônio terrível o molestando?
Mais um grito de desespero fez-se ouvir.
Após contornar uma enorme estalagmite, o menestrel o encontrou finalmente: uma pequena figura sentada, olhos espremidos de tanta força com que os fechava, cobrindo os ouvidos com as mãos. Ele bamboleava sobre o próprio quadril freneticamente num estupor alucinado e ofegante. Pouco mais atrás, inconscientes em pontos aleatórios no chão, havia cinco pessoas: os demais companheiros da confraria a que pertenciam Kaduka’rim e Manwe.
E eis que a memória dos últimos quatro meses vividos pelo menestrel retornou de supetão, como se um dragão tivesse caído dos céus sobre si; desde o início de seu exílio no Mosteiro da Alma Solar até o último local em sua memória antes do pesadelo: a pequena gruta no coração do Bosque dos Dentes Afiados, onde se encontrava o Tomo de Poder exigido como taxa de acesso ao Forte da Vela. E mais uma vez veio-lhe a imagem de Ghoranghut e suas lições. O Grão-bardo lhe ensinara um truque que nenhum de seus demais pupilos jamais sonhou em aprender: criar luz a partir do nada. Não era uma técnica refinada nem complicada. Muito pelo contrário. Bastava se concentrar em um ponto qualquer, não muito distante, e imaginar o sol do meio-dia naquele ponto. Entretanto criar luz era muito cansativo, e o Grão-bardo sempre o advertia para usar essa técnica somente em caso de necessidade, pois era muito exaustiva.
Julgando que aquela era uma situação adequada, Kaduka’rim imaginou o sol a uns dez metros de altura, diretamente acima de si. Porém a luminosidade criada estava muito longe de poder ser comparada à luz do sol, sendo mais parecida com a chama de uma tocha. Kaduka’rim voltou a enxergar as “cores claras”. Ele, porém, estava enfraquecido, e aquele truque o desgastou ainda mais. Somando tudo, seu estômago deu de si, e pôs para fora puro fel, e o menestrel foi ao chão, quase desmaiado. Mas mesmo assim foi rastejando até o menino.
– Chhh! Calma agora, garoto, está tudo certo – acalentou o Menestrel, abraçando-o suavemente e dando-lhe guarida – estamos todos aqui.
Kaduka’rim não sabia se isso era bom ou ruim, porém. Se quando alguém é mandado ao inferno acorda sozinho, por que seus companheiros jaziam ali?
Manwe não dava sinais de que despertaria daquele estranho frenesi.
Kaduka’rim ergueu seus olhos tentando buscar inspiração. Nada havia ali que pudesse ajudá-lo com o pobre menino. Sua luz bruxuleava instável. “É isso!” pensou.

Eu vou com meu lampião
e ele comigo vai
No céu brilham estrelas
Na terra brilhamos mais
Minha luz que fulge eterna
Vem espantar a escuridão
 Me tirar da solidão
E me acalmar o coração
Vem comigo lampião
Vem comigo lampião

 Aquele era um acalanto popular entre as crianças mulhorandi que o cantavam para espantar o medo da noite de Set. Na terceira vez que Kaduka’rim repetiu tais versos eles começaram a surtir efeito, pois o menino começava a se acalmar: sua respiração retomava o compasso natural e ele não mais se balançava. Manwe abriu os olhos.
– P-papai e mamãe estavam zangados comigo! Eles queriam me bater! E depois veio o ogro! E eles tinham machados!
– Já passou, Manwe. Foi um pesadelo – assegurou o menestrel. – Temos que sair daqui. Minha luz e o barulho que fizemos podem ter chamado a atenção de má companhia.
Porém, todos pareciam ter entrado num sono profundo, comatoso. Ainda mais barulho eles tiveram que fazer, e mais alarmados eles ficavam. Hammer, o chefe dos mineiros anões da cordilheira dos Picos Trovejantes, precisou levar vários tapas no rosto para despertar.
– Pssssiu! – chiou Gafir, o Vigilante, alarmado com a barulheira. Gafir era membro da guilda dos Juízes da Meia-Noite, uma extensa rede de ex-ladrões que de noite rondavam secretamente as ruas de várias cidades grandes caçando bandidos e rufiões através de espionagem e infiltrações nas guildas dos marginais. – Calados! – sussurrou ele. – Vocês ouviram isso?
– Ouviram o quê? – sussurrou apreensivo Ebérik, sábio sacerdote de Berronar Verargêntea, a Matriarca Protetora do Povo Anão e Consorte de Moradin, Pai dos Anões e Forjador das Almas. O jovem anão-dourado levou a mão à orelha, tentando escutar algo, mas sem sucesso.
Houve de repente um estranho bruxuleio na escuridão da caverna, como se na distância as sombras negras como os véus de Shar esvoaçassem.
– Vamos sair daqui! – ordenou em voz alta, sem se importar mais com qualquer perigo, o elfo-das-florestas e mateiro, conhecido como Olhos-do-falcão, que, como qualquer elfo, tinha ouvidos ainda mais apurados. – Ouço os passos abafados de vários pés correndo na nossa direção! Mexam-se!
Tamanhas eram a segurança e a certeza em seu alerta que imediatamente os demais correram para o túnel iluminado. Manwe gemia de terror.
– Deixem que Hammer e depois Manwe vão primeiro. Vou por último. Ajudo vocês a escalarem – instruiu Mahaluk.
Mais que depressa, com o perigo em seus calcanhares, um a um adentraram o túnel. Sábia foi a decisão de Mahaluk, pois era o mais alto e mais encorpado da companhia. Ele não queria atrasar seu grupo correndo o risco de entalar devida sua corpulência, que também era uma ótima cobertura para sua fileira caso houvesse qualquer disparo. Além do mais, o monge de Lathander estava acostumado àquele tipo de túnel, pois fazia parte de seu treinamento escalar os picos e gretas escarpados, arriscando quedas mortais em precipícios e despenhadeiros afiados como facas e escorregadios como se fossem de gelo, pois assim era a Muralha do Oriente, a alta e escarpada cordilheira que abrigava seu monastério.
Aquele túnel, porém, não era nem escarpado nem escorregadio, e tinha reentrâncias e saliências onde era possível agarrar e se impulsionar para frente e para cima, apesar de ser bastante oblíquo. Contava com uns dois metros de diâmetro e dez metros separavam os companheiros de sua extremidade oposta, e conforme subiam, eles notaram que raízes esparsas brotavam da terra compactada e rochosa, facilitando ainda mais a escalada.
– Andem logo! – gritou Mahaluk, que começara a escalar com tal agilidade que surpreendeu até mesmo o mateiro, mestre em se deslocar entre as copas das árvores, que estava logo a sua frente. Ao olhar para o monge, Olhos-do-falcão viu que uma sombra escura e amorfa começava a rastejar túnel acima, pouca distância atrás de Mahaluk.
Um a um os companheiros saltaram avidamente para fora. – Rápido, me ajudem com isto aqui! – disse Mahaluk. – Vamos tampar o túnel.
O monge rapidamente correu até uma pedra escorada a uma árvore logo ali, e empurrou-a com força, pois com sorte, e se seus cálculos estivessem corretos, ela cairia exatamente sobre a boca do túnel. Hammer e Olhos juntaram seus esforços aos do monge e, com uma pancada surda, a rocha selou o buraco, permitindo que, por ora, os companheiros permanecessem a salvo. Todos se atiraram ao chão, arquejando exaustos.

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