sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Dia do Meio do Verão, Ano da Magia Selvagem - SEGUNDA HORA

E de fato a piada incomodou profundamente o monge, pois tangia uma parte obscura de seu passado: ele desconhecia sua verdadeira origem. Tudo o que Mahaluk se lembrava era de ter sido criado e educado pelos abades do Mosteiro da Alma Solar desde criança. Mas ele sempre foi o único entre todos os acólitos de que se lembrava que possuía a pele cor de oliva recoberta por pequenas e discretas escamas, tornando sua pele semelhante à pele dos orcs; e seus olhos eram fendidos e completamente amarelados – como os de uma serpente.
Mahaluk, quando pequeno, já havia sido afrontado de modo semelhante por outro acólito. Vallaren era o nome do garoto grandalhão e cruel, que tinha o péssimo hábito de valer-se de sua corpulência e do fato de ser mais velho e maior que Mahaluk, para disparar fanfarronices e ofensas. No final das contas, meses depois, o grandalhão obteve a recompensa que merecia: permaneceu sem poder falar durante um ano. Pois Mahaluk se vingou derrotando-o no combate ritual em que obteve grau de pajem, acertando um murro espiralado bem colocado no meio da boca de seu adversário, partindo-lhe a mandíbula e arrancando vários de seus dentes.
Como se retornasse de um transe, o monge mais que depressa largou seu amigo e ainda mais depressa se pôs a ampará-lo e a pedir perdão por seu descontrole.
– Sou eu quem deve desculpas, amigo – respondeu Kaduka'rim massageando os próprios ombros e pescoço. – Já passou da hora de eu aprender os limites do fio da minha língua. Afinal foi graças a ela que tive que me exilar.
– Não é verdade – objetou Mahaluk. – Foi a intolerância que o expulsou de tua casa. A mesma intolerância que me fez perder a cabeça com tua piada, pois me jogou de volta a um tempo onde eu era hostilizado por minha aparência. Considerava que já tinha me livrado desse cancro, mas vejo que o sol de Lathander ainda não consegue iluminar esse recanto da minha alma.
– Eu é que não tolero essa conversinha mole de princesa – praguejou Hammer saindo da água. Rudemente ele se enxugou com a própria barba e começou a se vestir, devolvendo-lhes de modo tosco a compostura. Gafir pôs-se a gargalhar, e os companheiros se paramentaram novamente.
De repente, Olhos-do-falcão avistou algo diferente e se afastou dos demais. O mateiro viu que um plátano particularmente antigo, tão largo quanto uma casa e que torreava ali perto, possuía pinturas em seu caule.
– Camaradas, tenho ótimas notícias! – disse ele empolgadamente, reconhecendo as figuras. – Estes símbolos representam o Reino de Cormanthyr, a leste de Anauroch, o Grande Deserto. Corellon seja louvado!
– Impossível! – destoou Hammer. Seu lar ficaria poucas léguas a sudoeste do local que Olhos-do-falcão supunha estarem naquele momento. – De acordo com os velhos mapas e tapeçarias que existem em Pilares Profundos, o nome dos salões de onde venho, Cormanthor, que chamamos de Floresta da Velha Corte, fica pouca distância a nordeste dos Picos do Trovão. Era para fazer um frio de trincar pedra! Deveríamos estar vendo todas estas árvores desfolhadas e nevascas caindo. E faz um calor infernal! Você tem certeza que as gravuras são de Cormanthyr?
– Este é o triângulo formado pelas Três Lâminas Telquessir, cada um de seus vértices contendo a Crescente de Corellon e envolvendo a Harpa da Cidade-canção sob a Coroa de Eltargrim, último Coroado de Myth Drannor – descreveu o mateiro em detalhes inequívocos. – Estamos provavelmente na fronteira oriental de Cormanthor.
– E como você explica este clima? – insistiu Hammer.
O elfo permaneceu em pensativo silêncio. Havia uma possível resposta para a pertinente questão de Hammer, mas ele preferiu não dizer nada, pois era um assunto reservado apenas à sua própria gente.
– Em outras palavras, se fomos magicamente teleportados, estamos a meio mundo de distância de onde deveríamos estar – observou Mahaluk incisivamente. – Notícias não tão ótimas assim.
– E daí? – redarguiu Olhos-do-falcão subitamente aborrecido. – Você é surdo? Estamos perto de Myth Drannor! Minha família abandonou o lugar há séculos para morar em Artaur, muito antes de eu nascer. Se localizarmos a antiga casa da minha família, a Casa de Kwudang, encontraremos um portal mágico que leva de lá até minha casa na periferia de Artaur, não muito longe do Forte da Vela.
– Portal que pode estar estragado como o portal que nos trouxe até aqui – observou Manwe. – Se Mahaluk é surdo, você é louco. Sem mencionar os demônios que perambulam pelas ruínas. Meu mestre dizia que em Myth Drannor existia uma grande mágica protetora...
– Se sou louco, seu mestre era mais! – interrompeu o elfo, antecipando o que Manwe ia falar. “Mythal” era a palavra que o mateiro assassinou nos lábios do menino. E era também a resposta à pergunta feita por Hammer a respeito do clima: um dispositivo místico de segurança, criado pelos Artesãos telquessir mais habilidosos e poderosos, carregado de encantamentos protetores, designado com o propósito de proteger áreas enormes e telquessir que nessas áreas morassem, muitas vezes concedendo a eles capacidades extraordinárias. O conhecimento da existência desses dispositivos era realmente o mais secreto e sagrado para os elfos.
– Demônios? – disse Kaduka‘rim, com a lembrança do pesadelo mais que real quase projetada diante de seus olhos. – Aos diabos com os demônios! – Este era um provérbio do povo mulhorandi, que acreditava que os principais inimigos dos diabos eram os demônios e vice-versa, e não os anjos e arcontes como acreditava a maioria das outras nações. – Eu não vou para lugar nenhum onde existam demônios!
– Isso é besteira inventada por vocês humanos, que criam lendas para saquear a herança telquessir, sedentos por fama e tesouros! – disparou o elfo furiosamente.
– Parem! – gritou Ebérik, sempre o conciliador e a voz da razão, batendo forte seu malho contra seu escudo, à guisa de gongo. – Somos todos surdos, loucos e intolerantes. Vamos analisar a situação com calma: se ainda estivermos em Faerûn, estamos perto de Myth Drannor, longe do Forte da Vela e de Khelben. Precisamos de um livro mágico para entrar naquela maldita fortaleza. Myth Drannor é uma ruína de um local outrora aberto a todos os povos pacíficos, e não apenas aos elfos, e que, com ou sem demônios, deve conter algum livro qualquer dando sopa, já que se presume que seus donos deixaram o lugar faz tempo. Se não acharmos nenhum livro místico, um objeto de conhecimento retirado de Myth Drannor já é tesouro equivalente a qualquer grimório. Poderíamos pegar um livro e tentar um dos tais portais para a Floresta Alta, encurtando nossa viagem consideravelmente. Ou arriscamos os demônios e voltamos aonde deveríamos estar, dentro de dois dias, ou cruzamos Faêrun de mãos vazias em uma jornada de meses, que pode acabar em um fim tão trágico quanto ser dilacerado por demônios. Afinal de contas, muitas criaturas habitam os ermos das Terras Centro-ocidentais, e nem todas são civilizadas como nós.
– Digam o que quiserem – teimou o mateiro –, mas tenho plena segurança de que este é realmente o Quessirionduin. Juro pelos Seldarine e pelos Eladríni que estamos em algum lugar a leste ou nordeste de Myth Drannor, mas qualquer que seja o ponto exato, estamos a cerca de uma semana de lá, e não a apenas dois dias. Mas não se pode ter certeza de nada ainda. O que me intriga é esta estrela dourada de cinco pontas circundando o brasão. A tintura empregada aqui é mais recente que a tintura do emblema de Drannor. Não sei de nada que diga que Cormanthyr tenha sido anexado por algum outro reino, mas se foi, podemos encontrar problemas. Se formos à Cidade-canção, infelizmente é bom abandonarmos o rio exatamente onde estamos.

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