quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Dia do Meio do Verão, Ano da Magia Selvagem - SEGUNDA HORA


– Alguém pode, em nome dos deuses, dizer o que está acontecendo? Onde estamos? – esbravejou Hammer.
Esforçando-se, Manwe tentou se lembrar de cada ensinamento de seu querido mestre, que tanto lhe fazia falta. O terror cedeu lugar à tristeza.
– Acho que fomos teleportados por algum símbolo de proteção – disse ele. – Se for isso, temos um problemão: meu mestre um dia me disse que teleporte descontrolado pode mandar o conjurador para qualquer lugar nos Planos, sejam terras mortais ou imortais.
Ebérik sobressaltou-se assustado. – Que Berronar nos proteja! – exclamou ele. – Podemos estar nos Reinos Além, nas Terras dos Deuses! Não podemos avançar de outra maneira que não seja com extrema cautela. Preciso comungar com a Santa Mãe, já que não fiz isso na noite passada – disse Ebérik. – Precisaremos de Sua Sagrada Ajuda de agora em diante. Acredito que a Senhora de Prata olhou por nós enquanto ficamos apagados, e preciso demonstrar-lhe minha gratidão.
– Um reconhecimento da área realmente vem bem a calhar – observou Mahaluk, concordando com Ebérik. – Não sabemos o que poderemos encontrar pela frente.
Olhando ao redor, os companheiros constataram que estavam sob as copas de uma floresta. Porém, o clima se apresentava muito mais quente e abafado; não havia mais carvalho nenhum por ali e as castanheiras colossais haviam cedido terreno a muitas outras espécies de árvores, como bétulas, teixos, freixos, faias, mognos e muitas outras cujos nomes até mesmo Olhos-do-falcão desconhecia. As que mais chamavam a atenção eram árvores altas e sem folhas, cujas copas eram repletas de flores púrpuras, que cascateavam como véus pálidos à luz mortiça. Seus troncos cinzentos eram cobertos por líquenes esverdeados. O chão estava coberto por um tapete perene dessas flores, que a própria Chauntea deveria ter tecido ainda na Feitura de Toril, quando as luzes e as trevas combatiam entre si no firmamento. Colibris, cotovias, pintassilgos, pardais, estorninhos e muitos outros cantores cujas vozes eram desconhecidas aos companheiros compunham uma orquestra eterna em meio às copas. O doce e suave perfume da jovem primavera dominava o local. A forte luz do sol era filtrada através das folhas que brotavam em tons vivos de verde. O ar estava bem mais quente e ardido que o verão do norte. As folhas e as flores fulguravam iridescentes. Havia ali perto um riacho lamacento que, outrora, deveria ser bastante largo. Suas margens eram assombradas por nuvens de pernilongos, libélulas e mosquitos, vespas e abelhas. Inúmeras vezes os pássaros arriscavam rasantes em meio às nuvens vivas, errando por pouco as cabeças dos viajantes, indo banquetear os insetos infindáveis.
– Alguém está machucado? – disse o anão dourado levando a mão até seu medalhão sagrado. – Estarei humildemente pedindo a Berronar suas curas.
Como se em resposta a Ebérik, Kaduka’rim estalou os dedos, chamando a atenção para seu rosto.
– O que aconteceu com você? – disse Ebérik.
O menestrel então relatou a Ebérik seu pesadelo quase real e seu despertar em meio às formigas.
– Abra a boca e ponha a língua para fora.
O menestrel obedeceu e Ebérik examinou-lhe a garganta. – Você está sentindo algum desconforto na garganta ou dificuldade para respirar? – disse o sacerdote. O menestrel sinalizou negativamente com a cabeça.
– O veneno das formigas corre em suas veias, e dizem os mestres curandeiros que em alguns casos a garganta pode inchar, impedindo a respiração. Eu não tenho nenhuma prece contra venenos comungada, ou já teria diluído o veneno o suficiente para não causar estragos. Se você começar a sufocar, terei que abrir um buraco em tua garganta para você poder respirar novamente.
O menestrel, amedrontado, engoliu seco. Arrependeu-se, pois imaginou ter sentido um alarmante desconforto na garganta, mas não quis falar nada por enquanto.
– Talvez não tenhamos que chegar a isso – amenizou Olhos-do-falcão. – Mas agora retornando ao problema que temos à mão. Não adianta ficarmos aqui parados, e não podemos contar com que o Forte da Vela esteja próximo. O córrego do bosque corria para sudoeste; este riacho, pela posição do sol, corre para nordeste, exatamente a direção oposta, a não ser que estejamos em um ponto serpeante. Como faz calor aqui! Comparado à neve que enfrentamos até ontem, isto aqui é quase um escaldo! Vamos seguir o ribeiro e ver aonde ele nos conduzirá. Nas margens poderemos encontrar bambus que podem funcionar como tubos de respiração se a garganta de Kaduka’rim começar a se fechar, e conheço algumas plantas cujas seivas dão ótimos antídotos, e que costumam crescer em margens de fluxos.
Tendo percebido a sabedoria nas palavras do elfo, todos concordaram em seguir viagem margeando o ribeiro. Logo o mateiro encontrou um bambu perfeito para a delicada situação do menestrel. Apanhando seu próprio facão, o elfo cortou um gomo de espessura e comprimento adequados e lixou as bordas do gomo em um seixo grande como um ovo encontrado logo ali, eliminando quaisquer farpas. – Use isto se precisar – disse Olhos-do-falcão para Kaduka’rim, e entregou-lhe o pedaço de bambu. – Basta empurrar o bambu goela abaixo. Provavelmente vai machucar a garganta, mas você não vai morrer sufocado.

Os companheiros caminhavam com dificuldade pela floresta, pois não havia trilhas, o terreno era acidentado, lamacento e extremamente escorregadio, e a mata ciliar era muito densa, formando, frequentemente, emaranhados de raízes, cipós e trepadeiras quase intransponíveis. Suas copas entrelaçavam-se para formar um dossel tão espesso que deixava tudo abaixo envolto em penumbra eterna e nevoenta. Ocasionalmente sarças e espinheiros surgiam aqui e ali, alguns rasteiros e outros tão altos que formavam túneis sob os quais os companheiros eram obrigados a transpor rastejando. Logo ficaram completamente arranhados e cobertos de lama e espinhos, como almofadas repletas de alfinetes. Os viajantes continuaram seguindo pela margem oeste do riacho, que ocasionalmente fazia curvas e se dividia em alagados e lodaçais. Os mosquitos retornaram com força total e ferroavam tanto que mais pareciam estar arrancando nacos de suas peles, junto com as crostas de lama endurecida que, presumivelmente, deveriam afastá-los. Frequentemente os caminhantes afundavam até os joelhos, arriscando torções e ferimentos mais graves. Apesar disso, o ribeiro sempre continuava correndo para a mesma direção.
Conforme prosseguiam rumando para nordeste, mais estreito ficava o fluxo. De vez em quando, trechos de cascalho e seixos de vários tamanhos e cores salpicavam seu leito, que, em tempos idos, deveriam originar corredeiras ferozes. Iniciou-se um declive suave no terreno, e um juncal alto e denso começou a surgir na margem próxima do ribeiro, ocultando parcialmente seu leito. Naquele ponto, Olhos-do-falcão arrancou um punhado de pequeninas bagas avermelhadas de uma árvore baixa, de copa larga e frondosa, e as cheirou. Ele sorriu e foi até o menestrel.
– Mastigue isto aqui até o comecinho da noite e engula apenas saliva – disse ele a Kaduka’rim, entregando-lhe as ramagens. Não se preocupe que ainda não é hora de teus deuses te receberem.
Após uma quantidade cansativa de caminho percorrido, as árvores se abriram um pouco, e enfim puderam ver o vespertino céu azul turquesa novamente. Altas gramíneas começavam a se espalhar por todos os lados a partir de certo trecho, transmitindo a sensação de atravessarem um fofo tapete para os pés doloridos. Finalmente, os companheiros atingiram uma área onde o terreno ficava mais regular e firme. As árvores se abriram por completo e o céu completamente limpo saudou-lhes com um cálido olho dourado que em, no máximo, uma hora desceria para além do horizonte.
Ali perto, viram que o riacho derramava suas águas turvas num rio muito mais largo e de águas mais transparentes, embora ainda carregasse bastante sedimento. Apesar da margem igualmente lamacenta, o rio era muito largo. Provavelmente singrava mares verdes de uma floresta muito maior, pois sua longínqua margem oposta era, se não mais rica, igualmente arborizada. Naquele ponto, as aves faziam uma algazarra ainda maior e os peixes frequentemente saltavam para fora d’água para tanto dividir os insetos com as aves quanto para serem eles mesmos divididos por elas. Garças, martins-pescadores e outras aves ribeirinhas se esbaldavam com a abundância e com a diversidade de peixes. Este rio corria também para nordeste, porém era ainda mais voltado para o norte.
Com um amplo sorriso em seu formoso rosto, o forte Olhos-do-falcão inspirou profundamente enchendo seus pulmões com ar puríssimo.
– Quisera eu que este rio fosse o Abençoado Quessirionduin de Cormanthor, renomado em inúmeras canções e tradições do meu povo!
Mais que depressa, o mateiro despiu-se e pôs-se a se lavar da lama e a lavar as escoriações causadas pelos espinhos e pelas picadas dos insetos. Seus companheiros resolveram seguir o exemplo do elfo, e logo os sete estavam rindo, espirrando água uns nos outros, dando caldos uns nos outros e fazendo piadas com os pudores uns dos outros. Manwe já havia esquecido os terrores da caverna e ora ria enlouquecido; não só pelas piadas, pois era jovem e não tinha ainda muita malícia, não as compreendendo inteiramente, mas ele se sentia de volta ao circo, com seis palhaços fazendo palhaçadas ao seu redor.
Kaduka’rim, piadista profissional, lançava as mais afiadas alfinetadas e por isso era a vítima mais frequente das tentativas de afogamento, em especial da parte de Mahaluk que, por ser seu amigo mais antigo entre os demais, recebia o ápice satírico do menestrel. – Você tem tanta escama, Mahaluk, porque é filho de uma piranha! – sobressaiu-se entre as piores provocações. E nessa caçoada em particular Kaduka'rim sentiu em Mahaluk uma reação diferente, e ficou assustado, pois a chave-de-braço do monge foi muito mais apertada que as duas anteriores, e o menestrel podia jurar que teria o pescoço partido.

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